BACUARA

BACUARA

“Ser bacuara não é empreito comum, sequer é volição, sequer é objetivo, é pura descoberta, epifania grata, tudo nele vem naturalmente e tão necessariamente como o primeiro suspiro, aquele que se julga ter todo o saber decididamente não o é. Bacuara é luz entendida, jamais contemplada, é o círio permanentemente aceso contra o vigor de Éolo em apagá-lo. O bacuara apreende e muito, muito depois aprende e novamente apreende e assim em sucessivas pororocas centrifuga e fala.”

quarta-feira, 30 de junho de 2010

MEU SUBSOLO

Mas que fazer, se se me meteu na cabeça que não se vive somente para isso e que, se se vive, é num palácio que é preciso se instalar? Isto é minha vontade, isto é meu desejo, Vós não conseguireis me arrancar esta vontade, senão quando tiverdes modificado meus desejos. Pois bem! modificai-os, apresentai-me um outro fim, oferecei-me um outro ideal! Mas, enquanto espero, recuso-me a tomar um galinheiro por um palácio de cristal. É possível que o palácio de cristal não seja senão um mito, que as leis da natureza não o admitam e que eu o tenha inventado por tolice, impelido por certos hábitos irracionais da nossa geração. Mas que me importa que ele seja inadmissível! Que me importa, pois que ele existe nos meus desejos, ou, para dizer melhor, pois que existe tanto quanto existem meus desejos? Continuais a rir, penso. Ride tanto quanto vos agrade! Aceitarei todas as zombarias, mas recusar-me-ei a me declarar saciado, quando ainda tenho fome; não me contentarei com um compromisso, com um zero se renovando indefinidamente, pela única razão de que está conforme as leis da natureza e existe realmente. Não admitirei que o coroamento dos meus desejos possa ser uma casa de tijolos, com alojamentos a preço módico, arrendados por mil anos e ostentando a tabuleta do dentista Wagenheim. Destruí meus desejos, derrubai meu ideal, apresentai-me um fim melhor e eu vos seguirei. Dir-me-eis, talvez, que não vale a pena ocupardes-vos de mim; mas neste caso posso vos responder do mesmo modo. Nós discutimos seriamente, e se não vos dignardes me conceder vossa atenção, pois bem! não vou chorar por isso. Eu tenho meu subsolo.
 
 
 
 
BACUARA:    Fiódor Mikhailovich Dostoiévski

terça-feira, 22 de junho de 2010

O MELHOR GOVERNO É O QUE MENOS GOVERNA

Para os que não conhecem as fontes mais puras da verdade, que não querem subir mais pela sua correnteza, a opção - sábia - é interromper a sua busca na Bíblia e na Constituição; será aí que eles a sorverão, com reverência e humildade; mas para aqueles que conseguem perceber que a verdade vem mais de cima e alimenta esse lago ou aquele remanso, é preciso preparar de novo o corpo para continuar a peregrinação, até chegar à nascente.
Ainda não surgiu um homem dotado de gênio para legislar no nosso país. Homens assim são raros na história mundial. Oradores, políticos e homens eloqüentes existem aos milhares; mas ainda estamos por ouvir a voz do orador capaz de solucionar as complexas questões do dia-a-dia. Amamos a eloqüência pelos seus méritos próprios, e não pela sua capacidade de pronunciar uma verdade qualquer, nem pela possibilidade de inspirar algum heroísmo. Os nossos legisla­dores ainda não aprenderam a distinguir o valor relativo do livre-comércio frente à liberdade, à união e à retidão. Eles não têm gênio ou talento nem para as questões relativamente simplórias dos impostos, das finanças, do comércio e da indústria, da agricultura. A América do Norte não conseguiria manter por mui­to tempo a sua posição entre as nações se fôssemos abandonados à esperteza palavrosa dos congressistas; felizmente contamos com a experiência madura e com os protestos efetivos do nosso povo. Talvez não tenha o direito de afirmar isto, mas o Novo Testamento foi escrito há mil e oitocentos anos; no entanto onde encontrar o legislador suficientemente sábio e prático para se aproveitar de tudo o que esse texto ensina sobre a ciência da legislação?
A autoridade do governo, mesmo do governo ao qual estou disposto a me submeter - pois obedece­rei com satisfação aos que saibam e façam melhor do que eu e, sob certos aspectos, obedecerei até aos que não saibam nem façam as coisas tão bem -, é ainda impura; para ser inteiramente justa, ela precisa contar com a sanção e com o consentimento dos governados. Ele não pode ter sobre a minha pessoa e meus bens qualquer direito puro além do que eu lhe concedo. O progresso de uma monarquia absoluta para uma monarquia constitucional, e desta para uma democracia, é um progresso no sentido do verdadeiro respeito pelo indivíduo. Será que a democracia tal como a conhecemos é o último aperfeiçoa­mento possível em termos de construir governos? Não será possível dar um passo a mais no sentido de reconhecer e organizar os direitos do homem? Nunca haverá um Estado realmente livre e esclarecido até que ele venha a reconhecer no indivíduo um poder maior e independente - do qual a organização política deriva o seu próprio poder e a sua própria autoridade - e até que o indivíduo venha a receber um tratamento correspondente. Fico imaginando, e com prazer, um Estado que possa enfim se dar ao luxo de ser justo com todos os homens e de tratar o indivíduo respeitosamente, como um vizinho; imagino um Estado que sequer consideraria um perigo à sua tranqüilidade a existência de alguns poucos homens que vivessem à parte dele, sem nele se intrometerem nem serem por ele abrangidos, e que desempenhas­sem todos os deveres de vizinhos e de seres humanos. Um Estado que produzisse esta espécie de fruto, e que estivesse disposto a deixá-lo cair logo que amadurecesse, abriria caminho para um Estado ainda mais perfeito e glorioso; já fiquei a imaginar um Estado desses, mas nunca o encontrei em qualquer lugar.
BACUARA:    Henry David Thoreau

sábado, 19 de junho de 2010

ESTÁ NA LIBERDADE

"Isto deve ser dito: há no mundo excesso de grandes homens. Há legisladores demais,
organizadores, fundadores de sociedades, condutores de povos, pais de nações, etc. Gente
demais se coloca acima da humanidade para regê-la, gente demais para se ocupar dela."
"Parece-me que tenho a meu favor a teoria, pois qualquer que seja o assunto em discussão,
quer religioso, filosófico, político, econômico, quer se trate de prosperidade, moralidade,
igualdade, direito, justiça, progresso, trabalho, cooperação, propriedade, comércio, capital,
salários, impostos, população, finanças ou governo, em qualquer parte do horizonte científico
em que eu coloque o ponto de partida de minhas investigações, invariavelmente chego ao
seguinte: a solução para problemas sociais humanos está na liberdade."
A lei deve proteger a personalidade, a liberdade e a propriedade de cada um. Infelizmente, ela pode ser pervertida e posta a serviço de interesses particulares, tornando-se, então, um instrumentode espoliação.
“Não é porque os homens aprovaram leis que a personalidade, a liberdade e a propriedade existem“, declarou ele. “Pelo contrário, é porque a personalidade, a liberdade e a propriedade existem que os homens fazem leis... Cada um de nós certamente recebe da Natureza, de Deus, o direito de defender sua pessoa, sua liberdade, e sua propriedade.”



BACUARA:      Frédéric Bastiat

segunda-feira, 14 de junho de 2010

SERVIDÃO

        Disponham-se de um lado cinqüenta homens armados e outros tantos de outro lado; ponham-se em ordem de batalha, prontos para o combate, sendo uns livres e lutando pela liberdade, enquanto os outros tentam arrebatá-la dos primeiros: a quais deles, por conjectura, se atribui a vitória? Quais deles irão para a luta com maior entusiasmo: os que, em recompensa deste trabalho receberão o prêmio de conservar a liberdade ou os que, dos golpes que derem ou receberem, esperam tão-somente a servidão?
         Os primeiros têm constantemente diante dos olhos a felicidade de sua vida passada, a esperança de no porvir a poderem conservar. Preocupa-os menos o que têm de sofrer no decurso da batalha do que tudo o que vão ter de suportar eles, os filhos e toda a posteridade. Os outros nada têm que os anime, a não ser um pouco de cobiça que é insuficiente para protegê-los do perigo e tão pouco ardente que não tardará a extinguir-se logo que derramem as primeiras gotas de sangue.
         Nas muito famosas batalhas de Milcíades, Leônidas e Temístocles, travadas há já dois mil anos e que permanecem tão frescas na memória dos livros e dos homens como se tivessem acontecido ontem, nessas batalhas travadas na Grécia para bem da Grécia e exemplo do mundo inteiro, donde terá vindo aos gregos escassos não digo o poder mas o ânimo para se oporem à força de navios tão numerosos que mal cabiam no mar? E para desbaratarem nações tão numerosas que em toda a armada grega não se achariam soldados que chegassem para preencherem, se tal fosse mister, os postos de comandantes desses navios?
         É que, em boa verdade, o que estava em causa nesses dias gloriosos não era tanto a luta entre gregos e persas como a vitória da liberdade sobre a dominação, da razão sobre a cupidez.
         Quantos prodígios temos ouvido contar sobre a valentia que a liberdade põe no coração dos que a defendem!
         Mas o que acontece afinal em todos os países, com todos os homens, todos os dias?
         Quem, só de ouvir contar, sem o ter visto, acreditaria que um único homem tenha logrado esmagar mil cidades, privando-as da liberdade?
         Se casos tais acontecessem apenas em países remotos e outros no-los contassem, quem não diria que era tudo invenção e impostura?
         Ora o mais espantoso é sabermos que nem sequer é preciso combater esse tirano, não é preciso defendermos-nos dele.
         Ele será destruído no dia em que o país se recuse a servi-lo.
         Não é necessário tirar-lhe nada, basta que ninguém lhe dê coisa alguma.
         Não é preciso que o país faça coisa alguma em favor de si próprio, basta que não faça nada contra si próprio.
         São, pois, os povos que se deixam oprimir, que tudo fazem para serem esmagados, pois deixariam de ser no dia em que deixassem de servir.
         É o povo que se escraviza, que se decapita, que, podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos os meios.
         Se fosse difícil recuperar a liberdade perdida, eu não insistiria mais; haverá coisa que o homem deva desejar com mais ardor do que o retorno à sua condição natural, deixar, digamos, a condição de alimária e voltar a ser homem?
         Mas não é essa ousadia o que eu exijo dele; limito-me a não lhe permitir que ele prefira não sei que segurança a uma vida livre.
         Que mais é preciso para possuir a liberdade do que simplesmente desejá-la?
         Se basta um ato de vontade, se basta desejá-la, que nação há que a considere assim tão difícil?
         Como pode alguém, por falta de querer, perder um bem que deveria ser resgatado a preço de sangue? Um bem que, uma vez perdido, torna, para as pessoas honradas, a vida aborrecida e a morte salutar?
         Veja-se como, ateado por pequena fagulha, acende-se o fogo, que cresce cada vez mais e, quanto mais lenha encontra, tanta mais consome; e como, sem se lhe despejar água, deixando apenas de lhe fornecer lenha a consumir, a si próprio se consome, perde a forma e deixa de ser fogo.
         Assim são os tiranos: quanto mais eles roubam, saqueiam, exigem, quanto mais arruínam e destroem, quanto mais se lhes der e mais serviços se lhes prestarem, mais eles se fortalecem e se robustecem até aniquilarem e destruírem tudo. Se nada se lhes der, se não se lhe obedecer, eles, sem ser preciso luta ou combate, acabarão por ficar nus, pobres e sem nada; da mesma forma que a raiz, sem umidade e alimento, se torna ramo seco e morto.




BACUARA:     Étienne de La Boétie

quarta-feira, 9 de junho de 2010

O RACISMO É CRUEL

SEJA QUAL FOR O DEUS EU SOU O MESTRE DO MEU DESTINO E CAPITÃO DA MINHA ALMA. Considero isso como um dever que tinha, não apenas com meu povo, mas também com minha profissão, praticar a lei e a justiça para toda a humanidade, gritar contra esta discriminação que é essencialmente injusto e oposto a toda a base de atitude através da justiça que integra a tradição do treinamento legal neste país. Eu acreditei que ao me opor contra esta injustiça eu deteria a dignidade do que seria uma profissão honrada. Todos nos sentimos no topo do mundo. Essa foi a justificativa para os sacrifícios que têm sido feitos por nosso povo desde a chegada dos brancos neste país em 1652
Como podem esperar que eu acredite que esta mesma discriminação racial que tem sido a causa de tanta injustiça e sofrimento através dos anos, agora operaria aqui para me dar uma chance leal e aberta?...Não há nada como a liberdade. Somente homens livres podem negociar; prisioneiros não podem fazer acordos. Sua liberdade e a minha não podem ser separadas. Eu odeio o racismo, pois o considero uma coisa selvagem, venha ele de um negro ou de um branco.  É preciso acreditar na força do perdão. Aprendi que a coragem não é a ausência do medo, mas o triunfo sobre ele. O homem corajoso não é aquele que não sente medo, mas o que conquista esse medo.  



BACUARA:     Nelson Mandela 

terça-feira, 1 de junho de 2010

INTERNALIDADE EM ROMANCE

A donzela Arabela
(O amanuense Belmiro)


Aconteceu-me ontem uma coisa realmente extraordinária. Não tendo conseguido conter-me em casa, desci para a Avenida, segundo habito antigo. Já ela estava repleta de carnavalescos, que aproveitavam, como podiam, sua terceira noite.

Pus-me a examinar colombinas fáceis, do lado da Praça Sete, quando inesperadamente me vi envolvido no fluxo de um cordão. Procurei desvencilhar-me, como pude, mas a onda humana vinha imensa, crescendo em torno de mim, por trás, pela frente e pelos flancos. Entreguei-me, então, aquela humanidade que me pareceu mais cansada que alegre. Os sambas eram tristes e homens pingavam suor. Um máscara-de-macaco deu-me o braço e mandou-me cantar. Respondi-lhe que, em rapaz, consumi a garganta em serenatas e que esta, já agora, não ajudava. Imagino a figura que fiz, de colarinho alto e pince-nez, no meio daquela roda alegre, pois os foliões e engraçaram comigo, e fui, por momentos, o atrativo do cordão. Tanto fizeram que, sem perceber o disparate, me pus a entoar velha canção de Vila Caraíbas.

Uma gargalhada espantosa explodiu em torno de mim. Deram-me uma corrida e, depois de me terem atirado confete à boca, abandonaram-me ao meio da rua embriagado de éter. Novo cordão levou-me, porém, para outro lado, e, nesse vaivém, fui arrastado pelos acontecimentos. Um jato de perfume me atingia às vezes. Procurava, com os olhos gratos, a origem dessa caricia, mas percebia, desanimado, que aquele jato resvalara de outro rosto a que o destinara uma boneca holandesa. Contudo, aquelas migalhas me consolaram e comoviam. Dêem-me um jato de éter perdido no espaço e construirei um reino. Mas a boneca holandesa foi arrastada por um príncipe russo, que a livrou dos braços de um marinheiro.

Bebendo aqui, bebendo ali, acabei presa de grande excitação, correndo atrás de choros, de blocos e cordões. Não sei como, envolvido em que grupo, entrei no salão de um clube, acompanhando a massa na sua liturgia pagã.

Lembra-me que homens e mulheres, a um de fundo, mãos postas nos quadris do que ia à frente, dançavam, encadeados, e entoavam os coros que descem do Morro.

Toadas tristes, que vêm da carne.

A certo momento, alguém enlaçou o braço, cantando: “Segura, meu bem, segura na mão, não deixes partir o cordão...” O braço que se lembrou do meu braço tinha uma branca e fina mão. Jamais esquecerei: uma branca e fina mão. Olhei ao lado: a dona da mão era uma branca e doce donzela. Foi uma visão extraordinária. Pareceu-me que descera até a mim a branca Arabela, a donzela do castelo que tem uma torre escura onde as andorinhas vão pousar. Pobre mito infantil! Nas noites longas da fazenda, contava-se história da casta Arabela, que morreu de amor e que na torre do castelo entoava doridas melodias.

Efeito da excitação de espírito me que me achava, ou de qualquer outra perturbação, senti-me fora do tempo e do espaço, e meus olhos só percebiam a doce visão. Era ela, Arabela. Como estava bela! A música lasciva se tornou distante, e as vozes dos homens chegavam a mim, lentas e desconexas. Em meio dos corpos exaustos, a incorpórea e casta Arabela. Parecia que eu me comunicava com Deus e que um anjo descera sobre mim. Meu corpo se desfazia em harmonias, e alegre música de pássaros se produzira no ar. Não me lembra quanto tempo durou o encantamento e só vagamente me recordo de que, em um momento impossível de localizar, no tempo e no espaço, a mão me fugiu. Também tenho uma vaga idéia de que alguém me apanhou do chão, pisado e machucado, e me pôs num canapé onde, já sol alto, fui dar acordo de mim.

O mito donzela Arabela tem enchido minha vida. Esse absurdo romantismo de Vila Caraíbas tem uma força que supera as zombarias do Belmiro sofisticado e faz crescer, desmesuradamente, em mim, um Belmiro patético e obscuro. Mas viviam os mitos, que são o pão dos homens.

Nesta noite de quarta-feira de cinzas, chuvosa e reflexiva, bem noto que vou entrando numa fase da vida em que o espírito abre mão de suas conquistas, e o homem procura a infância, numa comovente pesquisa das remotas origens do ser.

Há muito que ando em estado de entrega. Entregar-se a gente as puras e melhores emoções, renunciar aos rumos da inteligência e viver simplesmente pela sensibilidade — descendo de novo cautelosamente, a margem do caminho, o véu que cobre a face real das coisas e que foi, aqui e ali, descerrado por mão imprudente — parece-me a única estrada possível. Onde houver claridade, converta-se em fraca luz de crepúsculo, para que as coisas se tornem indefinidas e possamos gerar nossos fantasmas. Seria uma fórmula para nos conciliarmos com o mundo.




BACUARA:   Cyro Versiani dos Anjos